12 DE NOVEMBRO DE 2017, DOMINGO
FONTE: RC
POR: Colagem de textos organizada por Maria João Andrade
Texto lido por Dolores de Matos na Sessão da Casa da Imprensa
A Revolução socialista na Rússia foi também feminista!
Nem todos sabem que foram as mulheres que mais jogaram a revolução para a frente. A ignição deu-se a 8 de Março de 1917, Dia Internacional da Mulher, no nosso calendário, quando as operárias têxteis iniciaram a greve e marcharam para o Parlamento. De seguida a mais reaccionária das monarquias, o Czar Nicolau, foi forçado a abdicar. Dolores de Matos leu a colagem de textos de China Mieville, Lenine, Trotsky e Alexandra Kollantai, mais o poema de Maria Velho da Costa, uma obra única. De seguida o texto.
A Revolução socialista na Rússia foi também feminista, marcada por um intenso protagonismo das mulheres. Foi também quando e onde, pela primeira vez, um país tomou medidas concretas para a emancipação da mulher.
Nos anos anteriores à revolução, assistiu-se na Rússia a um processo acelerado de feminização da classe trabalhadora. O conflito com o Japão nos anos 1904-5 e a primeira Guerra levaram à substituição da força de trabalho masculina pela feminina. Em 1917 as mulheres somavam já metade do total de trabalhadores, sendo a maioria no sector de serviços e nas indústrias têxtil, química, de tabaco, de alimentos e de produção de suprimentos para o exército.
Num artigo publicado em Junho no blog da Boitempo intitulado “As mulheres de 1917”, Megan Trudell começa dizendo:
“As mulheres não foram apenas a “centelha” da Revolução Russa, mas a força motriz que a impulsionou”.
Esta noção de que foram as manifestações, greves e outras ações de mulheres lutando por remunerações e condições de trabalho dignas e pelo fim da guerra que inadvertidamente deram início à tempestade que varreu o czarismo, e que sem o apoio das trabalhadoras operárias em Petrogrado, a insurreição de Outubro não teria ocorrido, é hoje uma noção partilhada por muitos historiadores.
PARA LEMBRAR O PAPEL DAS MULHERES NA REVOLUÇÃO E AS POLÍTICAS IMPLEMENTADAS PARA AS MULHERES NOS PRIMEIROS ANOS DO GOVERNO, VOU LER-VOS EXCERTOS DE TEXTOS DE TROTSKY, ALEXANDRA KOLLONTAI, CHINA MIÉVILLE E LENINE.
Conta-nos Trotsky na sua História da Revolução Russa:
“O dia 23 de fevereiro era o Dia Internacional da Mulher. Os círculos da social democracia tencionavam festejá-lo segundo as normas tradicionais: reuniões, discursos, manifestos, etc. Na véspera ainda ninguém poderia supor que o Dia da Mulher poderia inaugurar a Revolução. Nenhuma organização preconizava greves para aquele dia. (…) No dia seguinte, pela manhã, apesar de todas as determinações, as operárias têxteis de diversas fábricas abandonaram o trabalho e enviaram delegadas aos metalúrgicos, solicitando-lhes que apoiassem a greve. (…) É evidente pois que a Revolução de Fevereiro foi iniciada pelos elementos de base, que ultrapassaram a resistência de suas próprias organizações revolucionárias, e que esta iniciativa foi espontaneamente tomada pela camada proletária mais explorada e oprimida que as demais – as operárias da indústria têxtil, entre as quais estavam incluídas numerosas mulheres de soldados. (…) O Dia da Mulher foi bem sucedido, cheio de entusiasmo e sem vítimas.
Anoitecera e nada revelava ainda o que esse dia anunciava. No dia seguinte, longe de se apaziguar, o movimento dobrou em intensidade (…)”
Nesse Dia Internacional das Mulheres em 1917, mulheres tecelãs do distrito de Vyborg em Petrogrado, entraram em greve, saíram das fábricas e dirigiram-se às centenas, de fábrica em fábrica, chamando operárias e operários para a greve e envolvendo-se em violentos confrontos com a polícia e com os soldados.
E Trostky ainda, em “Cinco Dias: do 23 ao 27 Fevereiro 1917”, conta:
“Nesses encontros entre soldados e operários, as trabalhadoras jogam um papel importante. Mais ousadas que os homens, elas avançam em direção às tropas agarram-se às armas, suplicam e quase ordenam: “Retirem as baionetas, juntem-se a nós!”. Os soldados emocionam-se, sentem-se envergonhados, trocam olhares entre si com ansiedade, hesitam; um deles, por fim, toma a iniciativa e as baionetas são retiradas de sobre os ombros dos manifestantes num movimento de arrependimento; a barragem abre-se, no ar soam os hurras de contentamento; os soldados são rodeados, de todo o lado discute-se, critica-se, apela-se; a revolução dá mais um passo.”
No seu livro “Outubro: a história da Revolução Russa”, conta também China Miéville
“Chegou a noite e o ar cresceu ainda mais frio. Nas ruas agitadas tocavam-se músicas revolucionárias. Vendo trabalhadores da fábrica Promet que marchavam atrás de uma mulher, um oficial cossaco gozou com eles por estarem seguindo uma “bábá”, uma bruxa. Arishina Kruglova, a dirigente bolchevique em questão, respondeu-lhe que era uma trabalhadora independente, uma esposa e uma irmã de soldados na frente. Em resposta, as tropas que a afrontavam baixaram as suas armas”.
Ainda sobre a participação das mulheres na revolução, conta-nos Alexandra Kollontai, dirigente feminina da Revolução Russa de 1917, no Diário das Mulheres de Novembro de 1927:
“Se alguém olhar para trás poderá vê-las, essa massa de heroínas anónimas que Outubro encontrou a viver em cidades famintas, em aldeias empobrecidas e saqueadas pela guerra... De lenço na cabeça (vermelho, muito raramente até agora), uma saia gasta, um casaco de inverno remendado... Jovens e velhas, mulheres trabalhadoras e esposas de soldados, camponesas e donas de casa das cidades pobres. Muito mais raramente nesses dias, secretárias e mulheres profissionais, mulheres cultas e educadas. Mas entre aqueles que carregavam a Bandeira Vermelha à vitória de Outubro havia também mulheres da intelligentsia - professoras, empregadas de escritório, jovens estudantes e universitárias, médicas.
Marchavam alegre e generosamente, cheias de determinação. Iam a qualquer parte onde as mandassem. Para a Guerra? Colocavam o bivaque de soldado e tornavam-se combatentes no Exército Vermelho. Se usassem fitas vermelhas no braço, então corriam para os postos de primeiros-socorros para ajudar a Frente Vermelha contra Kerenski na Gatchina. Trabalhavam nas comunicações do exército. Trabalhavam felizes, convictas de que alguma coisa GRANDE estava a acontecer, e de que todos nós somos pequenas engrenagens na única classe revolucionária.
Nas aldeias, a mulher camponesa (com os maridos fora, na Guerra) conquistava a terra aos proprietários e desalojava a aristocracia dos postos que há séculos ocupava.
E, mais à frente ....
No ano de 1917, o grande oceano de humanidade levanta-se e agita-se, e a maior parte desde oceano é composto por mulheres... Algum dia a história escreverá sobre as proezas dessas heroínas anónimas da revolução, que morreram na Guerra mortas pelos Brancos e amargaram incontáveis privações nos primeiros anos seguintes à revolução, mas que continuaram a carregar nas costas o Estandarte Vermelho do Poder Soviético e do comunismo.
Isto é para aquelas heroínas anónimas, que morreram para conquistar uma nova vida para a população trabalhadora durante a Grande Revolução de Outubro, para aqueles a quem a nova república agora se curva em reconhecimento assim como ao seu povo jovem, alegre e entusiástico, começando a construir as bases do socialismo.
O Governo soviético implementou uma série de medidas concretas para alcançar a igualdade entre homens e mulheres. Políticas que incidiram sobre as leis, as políticas de socialização do trabalho doméstico, do emprego e da educação. Os intelectuais revolucionários comprometeram-se com um programa de emancipação da mulher, defendendo a sua inclusão na militância política e no trabalho assalariado, debatendo sobre a responsabilidade social e coletiva nas tarefas de reprodução da força de trabalho, e sobre o lugar das mulheres na sociedade.
Diz-nos Lenine, em “A CONTRIBUIÇÃO DA MULHER NA CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO”
“Tomemos a situação da mulher. Nenhum partido democrático do mundo em nenhuma das repúblicas burguesas mais progressistas, realizou em dezenas de anos nem mesmo a centésima parte de aquilo que nós fizemos apenas no primeiro ano de nosso poder.
Não deixamos literalmente pedra sobre pedra de todas as leis infames sobre as limitações dos direitos da mulher, sobre as restrições do divórcio, sobre as odiosas formalidades às quais estava vinculado, sobre a possibilidade de não reconhecer os filhos naturais, sobre investigação de paternidade etc., leis cujas sobrevivências, para vergonha da burguesia e do capitalismo, são ainda muito numerosas em todos os países civilizados. Temos mil vezes o direito de estar orgulhosos do que fizemos nesta matéria. Mas quanto mais eliminarmos o lixo das velhas leis e instituições burguesas, melhor veremos que com isso apenas preparamos o terreno para construir e não empreendemos ainda a própria construção.
A mulher, não obstante todas as leis libertadoras, mantém uma escravidão doméstica, porque é oprimida, sufocada, embrutecida, humilhada pela mesquinha economia doméstica, que a prende à cozinha, aos filhos e lhe consome as forças num trabalho bestialmente improdutivo, mesquinho, enervante, que embrutece e oprime. A verdadeira emancipação da mulher, o verdadeiro comunismo, só começará onde e quando começa a luta das massas (dirigida pelo proletariado, que detém o poder do Estado) contra a pequena economia doméstica, ou melhor, onde comece a transformação em massa dessa pequena economia em grande economia socialista [...]
Devido à tenacidade das próprias mulheres do partido, os Bolcheviques assumiam cada vez mais a organização e a politização das mulheres.
Lideres femininas Bolcheviques, como Kollontai, Krupskaia, Armand, Konkordiia Samoilova e Vera Slutskaia entre outras, argumentavam que o partido deveria esforçar-se especialmente para organizar as trabalhadoras e desenvolver a sua formação política. Elas lutaram para convencer seus camaradas homens de que as mulheres trabalhadoras não qualificadas eram de importância central à revolução, e não um obstáculo passivo, conservador e “atrasado”. O jornal bolchevique Rabotnitsa (A mulher trabalhadora), publicado pela primeira vez em 1914 e relançado em maio de 1917, trazia artigos sobre a importância de creches, berçários e legislação protectora do trabalho das mulheres, destacando repetidamente a necessidade de igualdade e da “questão feminina” ser assumida por todos os trabalhadores.
Seis semanas após a Revolução de Outubro, o casamento foi substituído pelo registo civil e o divórcio tornou-se acessível a pedido de qualquer uma das partes. Essas medidas foram elaboradas um ano mais tarde no Código da Família, que tornou as mulheres iguais perante a lei. O controlo religioso foi abolido, removendo de um só golpe séculos de opressão institucionalizada; o divórcio poderia ser obtido por qualquer uma das partes sem necessidade de qualquer razão; as mulheres tinham direito ao seu próprio dinheiro e nenhum dos parceiros tinha direitos sobre os bens do outro. O conceito de ilegitimidade foi erradicado – se uma mulher não sabia quem era o pai, todos os seus parceiros sexuais anteriores assumiam a responsabilidade coletiva pela criança. Em 1920, a Rússia tornou-se o primeiro país a legalizar o aborto mediante solicitação.
A terminar, um poema da Maria Velho da Costa, de Dezembro de 1975, intitulado:
REVOLUÇÃO
Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Eles foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Dezembro 1975
Maria Velho da Costa, Cravo, Lisboa, Moraes Editores, 1976.