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29 DE JULHO DE 2020, QUARTA-FEIRA
A periclitante indústria privada da saúde
Paulo Fidalgo
Na aparência, os hospitais privados têm sido bem sucedidos com rápida proliferação da oferta. Num curto espaço de tempo aumentou o nº de hospitais, um movimento agora acelerado com a expansão de Luz, Descobertas e a prometida abertura da CUF TEJO.
É intrigante, contudo, que esta última aposta, há tempo concluída, tarde em iniciar atividade (será em Outubro de 2020?) qual hesitação numa marcha que se pensava imparável e estonteante.

Quase que se pode dizer que os hospitais privados surgiram para ocupar um vazio resultado da estagnação do SNS a partir do final dos anos 90 de século passado. Nas suas barbas tinha-se desenhado no tecido económico e social, uma oportunidade (e uma necessidade) histórica na economia da saúde.

Cresceu o valor dos atos e cresceu a expectativa de lucro, rebocados pelos prodigiosos progressos da biologia e tecnologia. A velha medicina privada deixou-se ficar para trás, as clínicas onde o médico ia ver os seus doentes ou executar algumas técnicas e que serviu para a frágil acumulação durante décadas do capital de base médica deixou, de todo, de poder acompanhar a passada dos enormes recursos de capital necessários em alta tecnologia. Debaixo dos dogmas do neoliberalismo representados nos partidos da direita e de setores socialistas, as políticas adotadas travaram o SNS e votaram-no ao imobilismo, na expectativa de reduzir despesa do Estado e alienar negócio para a privada. Foi no contexto de necessidade de capital e na miragem de uma elevada taxa de lucro que foi escancarado o ouro da medicina, do seu saber único e missão social específica, ao assalto do capital, bancário e de fundos diversos.

Do lado dos profissionais, durante décadas aliados na construção de um sistema público robusto, por nele terem uma plataforma capaz de satisfazer a sua ambição técnico profissional e emprego aceitável, é preciso reconhecer que não houve especial interesse, nem foi gerada força social para capturar para o setor público todo o novo manancial que entretanto se vinha afirmando. E porquê? Porque, na verdade, esta nova perspetiva da medicina era cobiçada por profissionais do público para melhorar rendimentos, em pluriemprego. Muitos deixarem-se seduzir por contratos melhorados acenados pelos hospitais privados, fundamentalmente ligados ao número de atos, quando era notória a deterioração salarial do público e bastante obsoleta (por desprezar o mérito) a relação retributiva aí praticada. Fragilizou-se assim pois a antiga aliança entre profissionais e SNS. O imobilismo retributivo no SNS forçou movimentos e transferências adaptativas em largos setores. É chocante que quase 3 décadas depois de se ter iniciado no público o debate sobre a necessidade de se criar um sistema retributivo e de carreira que acentue o mérito e a qualidade da prestação, nada se tenha feito, enquanto do lado privado se pratica todo o género de soluções retributivas, infelizmente quase só orientadas para faturar sem verdadeiramente cuidar.

Porém, a afirmação dos hospitais privados, tinha e tem, contradições que começam a fazer pairar as nuvens da crise. E não falamos ainda dos efeitos da recessão pós COVID com a previsível retração da procura. Neles, o modo de organização dos cuidados, tal como nas velhas clínicas, contínua baseado no exercício profissional individual, sem organização em serviço de ação médica sem articulação coerente entre os diversas profissões da saúde com quase total aposta no pagamento à peça. Este tipo de individualismo profissional está em contradição frontal com o necessário aproveitamento pleno das potencialidades da medicina atual que, exatamente ao contrário, exigem a máxima cooperação interprofissional e fileiras disciplinadas rigorosas. O modo de produção, ou se quiserem, o modo de vida nos hospitais privados serve sem dúvida para estimular comportamentos hiper-produtivos, mas com fácil deslizamento para práticas inapropriadas, sem permitir, de todo, acomodar as exigências máximas de organização e qualidade que pontificam na medicina atual. O privado pode ter uma pletora de máquinas de ressonância, muito superior ao público e deveras mais modernas, mas com pagamentos baixos à peça, com faturação a metro, as informações que delas se podem extrair arriscam a ficar invisíveis ou erradamente interpretadas.

Na verdade, a vida profissional em ambiente privado é de significativa competição entre profissionais e, nele, assume muito pouca importância a cooperação, característica absolutamente indispensável numa indústria muito complexa como a da saúde.

Atribuir prioridade aos atos sem coerente ligação e objetivos, aos meios complementares de diagnóstico em larga escala, assentar quase tudo no pagamento à peça, são forças que pressionam a seleção adversa de clientes menos penalizados por doença catastrófica ou crónica, sem portanto carecer de cuidados especializados de longa duração. E atrai clientes que são presas fáceis de consumismo sem fundamento técnico. Trata-se portanto de uma população menos doente com descarte tendencial dos que estão realmente carentes de cuidados compreensivos, avançados, de estratégias multidisciplinares de abordagem e que mais deveriam beneficiar de todo o prodígio da medicina numa prática rigorosa e de alta qualidade. Com estes regimes de trabalho, a hospitalização privada não vai lá.

O modelo de produção da privada cresceu em número de atos e faturação mas tornou-se cada vez menos relevante para obter ganhos efetivos em saúde no país, em ser em concreto parte do desígnio de Portugal obter uma esperança de vida saudável aumentada para poder sair da difícil situação de em que se encontra muito abaixo da média europeia*.Do ponto de vista do desenvolvimento do país e do seu avanço para uma sociedade moderna e socialmente coesa, os gigantescos recursos empregues na grande indústria privada da saúde podem ser um enorme desperdício. O paí conseguiria atingir o patamar dos índices de saúde da Suécia, os melhores do continente europeu, com uma estratégia muito mais económica, mais eficaz e em relativamente poucos anos.

A pressão para seleção adversa de pessoas menos doentes, não é apenas inerente ao chamado modelo de negócio dos hospitais privados. É também o resultado da pressão de seleção gerada pelas seguradoras. O modelo de seguro vigente, com a exceção da cada vez menos funcional ADSE, concentra-se na população mais jovem e saudável com evidente descarte dos outros. Por outro lado, a conduta das seguradoras privilegia as prestações com preços mais baixos impondo um esmagamento das margens que agora afeta cada vez mais os rendimentos dos profissionais e deixa inquietos os que optaram por mergulhar no canto de sereia dos grandes hospitais privados. As decepções são grandes e irão ser maiores.

Num primeiro reflexo, os médicos dos grandes hospitais privados, resistem e tentam defender o seu estatuto original preservando uma contratação individual deslocando-se para unidades que ainda praticam margens menos esmagadas. Mas, ao fazê-lo, reiteram o sistema individualista incompatível com o sentido atual da medicina. Querem voltar atrás, para uma realidade que se esvai. Por outro lado, os grandes hospitais privados não mostram por enquanto capacidade para se reorganizar no sentido de acolherem todas as potencialidades da medicina. Notam-se alguns movimentos internos que parecem ir nesse sentido mas não avançam, não conseguem sair do reino da utopia para rasgar uma perspetiva prática viável. É cada vez mais notório que organizar fileiras complexas de cuidados entra em choque com o modo de produção.

Num quadro de medicina avançada e de uma política de saúde virada para o aproveitamento integral e racional dos recursos, é o modelo público, gerido para objetivos de saúde, claros e consensualizados, que em melhor posição se encontra para tirar proveito dos recursos disponíveis, reconquistar a sua base profissional e alcançar uma melhoria radical na esperança de vida com saúde. Aos hospitais privados enredados no labirinto das suas contradições, salvo se o SNS não reagir, de todo, fica-lhes o caminho de decadência.

* https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Healthy_life_years_statistics


 

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