
14 DE ABRIL DE 2007, SÁBADO
por Paulo Fidalgo
O lugar da Àgora (αγορά) na acção do Gato Fedorento!
Um olhar inspirado em Lukács (e no seu divulgador americano Normam Levine)acerca da brilhante iniciativa de "O Gato Fedorento" em combater a provocação xenófoba na praça pública. Em como a retoma de uma especulação marxista sobre a moldura democrática no socialismo conduz necessáriamente à crítica da democracia burguesa e retoma o ideal da Àgora da polis grega na construção do futuro!
A Àgora é o lugar do mercado ou da praça pública na polis grega. Onde está o centro da política, bem no meio da vida do dia a dia. Nesta concepção, a política não está reduzida ao Estado ou às disputas do poder que o tutelam. Não está colapsado nele o cerne da decisão e da soberania, não se resume a ele o fulcro da atenção, ou nos partidos que o reproduzem e alimentam.
Para o modelo da Àgora, está na sociedade civil o centro decisor, na mulher e no homem unitários, unidade entendida na continuidade coerente, entre as suas dimensões privada e pública, tão brutalmente fragmentada na democracia burguesa. A Àgora é onde está situada a política, ao fim e ao cabo, na mera continuidade do dia a dia de vida da trabalhadora e do trabalhador, do seu metabolismo, mas igualmente dos seus sonhos e talentos.
Na democracia burguesa, centra-se a política no estado e nos seus aparelhos de reprodução, inclusive nos partidos políticos, e é entendida a liberdade como um sistema de proibições que defende o cidadão privado das coerções externas que o ameaçam. A liberdade significa pois, na sociedade burguesa, a liberdade da não interferência por factores externos sobre as decisões privadas, ou melhor dizendo, consiste na regulação da coerção externa que ameaça o espaço privado.
Ao contrário, os que procuram abrir caminho para a democracia socialista, e que perseguem o renascimento da Àgora, naqueles que encontram nela uma base de recriação da teoria política marxista, entendem que a ideia de liberdade se transforma na permissão para realizar todas as funções humanas. Liberdade para significa acentuar a ideia de facilitação, de possibilitar o preenchimento integral das capacidades do indivíduo, na sua radical individualidade mergulhada numa sociedade estruturada.
Nesta oposição, a liberdade burguesa é negativa, dirigida contra as forças externas, enquanto que a liberdade socialista é positiva, e se relaciona com o acesso à livre expressão interior (Norman Levine).
Nesta perspectiva, é olhado o socialismo, naturalmente, como florescimento do indivíduo e como democratização geral de toda a sociedade. Opõe-se assim às ideias infantis de colapso da individualidade a favor da supremacia do colectivo, supostamente alcançável, apenas, por via de um modelo económico igualitarista e homogeneizador, um ideal erigido como consequência simplificada do almejado objectivo de eliminar a estratificação da sociedade em classes. Segundo essa simplificação, o fim das classes eliminaria para todo o sempre, de forma automática, qualquer estratificação ou diferenciação de interesses individuais ou de grupo, e seria portanto um ponto culminante onde deixaria de haver política, protocolos sociais de decisão, e tudo se transformaria em administração.
Nos modernos cultores da democracia socialista, a eliminação das classes sociais, é alcançável é certo pela supressão da propriedade privada produtiva. É igualmente perseguida pela restauração da primeira das condições da liberdade, materializável no controlo da produção pelo produtor, naquilo que constitui a visão transformadora, nuclear, do marxismo. Porém, essa superação das classes não é vista como condição de homogeneização mas como condição para o florescimento radical da individualidade e do pluralismo dos grupos de interesse. Num futuro polvilhado de diversidade que exige muito maior regulação e organização de protocolos sociais de decisão.
A democracia socialista, de acordo com as afirmações dos clássicos de resto, aposta e vê o fulcro da moldura socialista no crescimento do indivíduo cada vez mais liberto da compulsão do trabalho necessário, aquele trabalho que garante a mera reprodução da espécie. E vê em paralelo na recentragem na praça pública, no lugar onde se trabalha e se vive, se consome e se ama, o espaço do poder e da regulação.
Se pode esta construção parecer demasiado abstracta, a verdade é que proliferam já hoje sinais de um socialismo que está embrionariamente presente nas nossas vidas. A política portuguesa dá a este propósito sinais de evolução que questionam as convicções daqueles que julgavam imóvel a configuração do Estado e dos partidos, aos quais não seriam atribuídos mais do que estreitas possibilidades de variação.
O evolucionismo das formas e do conteúdo da política exprime, por exemplo, uma interessante mutação no que foi a surpreendente emergência do debate na praça pública, em torno da provocação xenófoba de um grupelho fascista. O que há a relevar são precisamente os sinais de renascimento de uma mentalidade evocativa da Àgora. Não foi o Estado, nem os seus órgãos de coerção, ainda que na sua forma actual, democrática, que entraram na liça contra a provocação. Recusaram aliás expressamente actuar. O que marcou decisiva e originalmente o fenómeno foi o grupo humorista do Gato Fedorento confrontar a xenofobia com o seu ridículo na praça pública, ao melhor estilo do speaker’s corner inglês. Em vez de visar a trincheira ou arena do Estado, o Gato Fedorento visou, em primeiríssimo lugar, actuar sobre a opinião pública. Sobre o dia a dia das trabalhadoras e trabalhadores que cruzam o espaço do Marquês de Pombal, ou dos que lêem jornais ou vêem televisão. De repente, o privilégio da política recentrou-se na praça pública, secundarizou de forma subliminar mas clara, as instituições convencionais do poder e da política. Para os que procuram reconstruir uma teoria política marxista, que investigue e dê prospecção a uma moldura para a edificação socialista, para a transição, são encorajadores os sinais de eficácia e originalidade dados pela iniciativa dos Gato Fedorento.
Como o foram aliás, em boa medida, os movimentos que dinamizaram a vitória no referendo da despenalização da interrupção voluntária da gravidez. A vitória no referendo visou, é certo, a normativa estatal. Mas foi antes de tudo uma batalha na praça pública, para determinar na mentalidade e opinião dos portugueses, no seu dia a dia, a hegemonia de um ponto de vista pertinente. Ponto de vista que afinal precede e sobreleva sobre a tradicional importância do Estado e dos seus aparelhos. Foi ainda a vitória de uma reconciliação entre a regra privada e a pública, na medida em que resolveu a inaceitável hipocrisia das mulheres que abortam privadamente debaixo de uma coerção externa que regularia ilusoriamente um dado comportamento público.
A reconstrução de uma teoria política emancipadora, tão longamente adormecida entre os revolucionários do século XX, não deixa de dar sinais de prospecção em fragmentários debates da esquerda. Tornados em prioridade, na medida em que a pressão das alternativas nos coloca, para além do programa económico da transição de modos de produção, o problema fulcral da democratização que supere a visão restritiva, burguesa, hoje dominante, segundo a tradição Jeffersoniana originada nos debates constituintes da Revolução Americana. A mudança de paradigma económico, fulcral na ideia de alternativa, deve estar ancorado numa ideia, num guião sobre a democracia socialista e, neste sentido, o debate entre marxistas deve voltar urgentemente ao primeiro plano. Toda a tradição marxista, largamente padronizada e institucionalizada no IIª Internacional, mesmo contando com as batalhas ideológicas subsequentes do bolchevismo, com o Estado e a Revolução, se centra na ideia que a construção socialista será o fim da política e do Estado, porque supostamente se dará uma igualização e homogeneização sociais. Neste aspecto, há substancial sobreposição entre Lenine e a tradição da IIª Internacional. Com essa ideia, os grandes revolucionários acabaram por dar azo por um lado ao espontaneísmo na condução política da transição e, por outro, às violações da democracia por aqueles que usurparam as revoluções em metamorfoses de estatismo e nacionalismo. Para quem não consegue deixar de pensar e imaginar saídas para o socialismo, os grandes momentos revolucionários do século XIX e XX, a Comuna, os sovietes, as Repúblicas dos Conselhos, as nossas comissões de trabalhadores e de moradores, não são mais do que renascimentos modernos da ideia ancestral da Agora. São de resto clamorosos sinais de que a democracia burguesa Jeffersoniana poderá e será superada com a generalizada democratização, com mais democracia participativa, onde o instituto de referendo ocupará um lugar central, com prioridade à proximidade nos protocolos de decisão, com mais regionalização e com restauração da coerência entre a dimensão privada e pública numa sociedade mais igual, mas muito mais plural, onde “o desenvolvimento livre de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (Karl Marx).
Leitura recomendada: Gyorgy Lukács, “The democratization process”, New York University Press. Livro escrito pelo grande marxista húngaro, um dos maiores vultos do marxismo do século XX, em 1968, no rescaldo da invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia para esmagar a chamada “Primavera de Praga”, onde pontificava a liderança de Alexandre Dubcek. O livro é uma condenação frontal do estalinismo, e uma reflexão original sobre os necessários caminhos que o socialismo deveria trilhar para retomar a iniciativa histórica, assumindo-se precisamente como plataforma para a generalizada democratização. Foi o veiculo que Lukács encontrou para apoiar a iniciativa frustrada dos que se bateram em Praga pela renovação do comunismo. Visto de acordo com as prevenções de Lukács não como vitória da visão Jeffersoniana mas como efectiva democratização. A posição de Lukács, para além de frontal e corajosa para o tempo de Brejnev, foi mesmo assim ostensivamente proibida e apenas viu a luz do dia em Budapeste no ano de 1988. A posição de Lukács, como visão estrutural e estratégica do socialismo, trazia também a marca da autoridade política de quem, como Lukács, tinha sido parte activa nos acontecimentos da Hungria em 1956. Onde o filósofo entrou no Petófi Club e assumiu funções de ministro do governo Nagy e por muito pouco escapou à eliminação física que vitimou o então primeiro-ministro húngaro.