24 DE MAIO DE 2003, SÁBADO Manifesto da Renovação Comunista Conheça o manifesto da Renovação Comunista, o documento fundador do movimento Manifesto da Renovação Comunista Aprovado pelo 1º Encontro Nacional do Movimento da Renovação Comunista – Lisboa, 24 de Maio de 2003. Numa altura em que o mundo atravessa um período particularmente conturbado, consequência da guerra contra o Iraque e da afirmação planetária do poder imperial americano, da quebra nos mercados bolsistas e de uma profunda crise económica que atinge uma significativa parte da população do planeta, mas em que igualmente se observa uma muito vasta movimentação social e política contra o neoliberalismo e a guerra, faz sentido e é particularmente oportuno que os comunistas examinem criticamente as causas dos seus fracassos e dificuldades e empreendam um corajoso esforço de renovação do seu projecto, da sua organização e da sua intervenção. Este documento não é nem quer ser confundido com um documento-guião, que fixe de forma rígida um conjunto de orientações fundamentais. Na sua origem esteve uma valiosa contribuição do camarada João Amaral à qual se vieram somar contribuições e opiniões de muitos outros comunistas, num processo que só não foi mais alargado e participado devido às características informais de que o movimento de renovação comunista se revestiu até agora. Depois de aprovado e de passar a ser o documento de referência da Renovação Comunista, o Manifesto pretende ainda assumir-se como um ponto de apoio e um estímulo para o prosseguimento da reflexão e do debate e para a preparação de futuros momentos de fixação das posições do nosso Movimento. . 1. O comunismo “não é um estado que deve ser criado, nem um ideal sobre o qual a realidade deverá regular-se” mas o “movimento real para abolir o actual estado de coisas” como Marx e Engels apontaram. O ponto de partida deste Manifesto da Renovação Comunista é uma profunda convicção de que o capitalismo e a sua actual fase, a da globalização neoliberal, não constituem um inevitável “fim da história”. Pelo contrário, esta fase e a agressiva afirmação do império norte-americano antecipam a necessidade de construir um mundo novo, liberto das formas de alienação, exploração e dominação, bem como da destruição dos equilíbrios ambientais, e onde impere a cooperação de trabalhadores livres e auto-organizados. A humanidade, e nela o povo português, têm ao seu alcance a construção de uma outra organização social e económica, que supere as contradições e as alienações características da sociedade capitalista onde a revolução científico-tecnológica e o desenvolvimento acelerado das forças produtivas caminha simultaneamente a par com o crescimento das diferenciações sociais, com o cavar de um fosso cada vez mais profundo entre pobres e ricos, com o adiamento da resolução de problemas básicos para uma parte significativa da população do planeta (alimentação, saúde, educação, habitação, abastecimento de água potável) para os quais existem hoje meios de o fazer, com a hegemonização imperial das relações internacionais e a proliferação de conflitos, com o agravamento dos problemas ambientais à mercê da voragem predadora das grandes companhias, com uma profunda injustiça do comércio internacional. Tendo emergido esporadicamente ao longo da história da humanidade, as concepções de natureza comunista ganharam consistência e base social de apoio a partir do início da época contemporânea, paralelamente à afirmação do modo de produção capitalista. Correspondendo a um sonho milenar da humanidade, a construção de uma sociedade comunista não constitui hoje uma utopia, mas um projecto praticável, tornado necessário pelo avolumar de impasses e o agravamento de crises no capitalismo. É um projecto que pode ser mobilizador da criatividade e empenhamento dos trabalhadores e dos povos, desde que assente no rigoroso conhecimento das realidades económicas, sociais e culturais, tendo em vista a transformação da sociedade no sentido da emancipação social e política de toda a sociedade e da superação das alienações que sobre ela pesam. Em condições sem dúvida muito mudadas, pelo prodigioso desenvolvimento das forças produtivas, pelos avanços científicos e tecnológicos, pela generalização do capitalismo à escala mundial, assumimos a visão essencial que Marx e Engels apresentaram no Manifesto do Partido Comunista. Destacamos também a actualidade da compreensão que expuseram na sua obra A Ideologia Alemã de que “o poder social, isto é, a força produtiva multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos condicionada pela divisão de trabalho, não aparece a esses indivíduos como o seu próprio poder conjugado, porque essa própria cooperação não é voluntária, mas natural; ele, o poder social, aparece-lhes pelo contrário como um poder estranho, situado fora deles, um poder que não sabem de onde vem nem para onde vai, que não podem pois dominar e que, pelo contrário, percorre agora uma série de fases e de estádios de desenvolvimento, de um modo tão independente da vontade e da marcha da humanidade que verdadeiramente é ele que dirige essa vontade e essa marcha da humanidade”. Para concluirem de seguida que “esta «alienação» (...) só pode, naturalmente, ser abolida mediante duas condições práticas. Para que ela se torne um poder «insuportável», quer dizer, um poder contra o qual se faz a revolução, é necessário que ele faça da humanidade uma massa totalmente «privada de propriedade», que se encontra ao mesmo tempo em contradição com um mundo de riqueza e de cultura realmente existente, coisas que pressupõem ambas um grande crescimento da força produtiva, quer dizer um elevado estádio do seu desenvolvimento. Por outro lado, este desenvolvimento das forças produtivas (que implica já que a existência empírica actual dos homens se desenvolve no plano da história mundial em vez de se desenrolar no da vida local) é uma pré-condição prática absolutamente indispensável, porque sem ela, é a penúria que se tornará geral, e, com a necessidade, é também a luta pelo necessário que recomeçará e então voltar-se-á a cair fatalmente na mesma velha história. É ainda uma condição prática sine qua non, porque só através do desenvolvimento universal das forças produtivas podem ser estabelecidas relações universais do género humano e porque ele engendra o fenómeno da massa «privada de propriedade» simultaneamente em todos os países (concorrência universal), tornando em seguida cada um deles dependente das transformações dos outros, substituindo por fim os indivíduos que vivem num plano local por homens empiricamente universais, que vivem a história mundial.” Finalizando depois, luminosamente, com a ideia de que “o comunismo só é empiricamente possível como acto “súbito” e simultâneo dos povos dominantes, o que supõe por sua vez o desenvolvimento universal da força produtiva e as trocas mundiais estreitamente ligadas ao comunismo”. Que “para nós, o comunismo não é um estado que deva ser criado, nem um ideal sobre o qual a realidade deverá regular-se”, “nós chamamos comunismo ao movimento real que supera o actual estado de coisas”, “as condições deste movimento resultam das premissas actualmente existentes”. 2. A implosão do “socialismo real” no leste e a perda de poder de atracção do projecto comunista, em Portugal como por todo o mundo, impõem um exame em profundidade dos caminhos percorridos durante o século XX e um questionamento sem limitações que aspire a chegar à raiz dos problemas que fizeram retroceder o empreendimento comunista. O esvaimento do projecto emancipador de Outubro de 1917 na Rússia, a sua progressiva substituição por uma forma de capitalismo de Estado conduziu a uma crise de tipo novo onde se afrontaram forças empenhadas por um lado em avançar para o socialismo a partir das formações do capitalismo de Estado e, por outro, forças apostadas em fazer essas sociedades reentrar no sistema capitalista. A compreensão das razões para aquele esvaimento, para a emergência de um modelo de capitalismo de Estado e sua absolutização, e posterior retrocesso para o capitalismo, constitui uma necessidade decisiva para a renovação do pensamento comunista. Há mais de uma década que a direcção do PCP bloqueia a realização de um verdadeiro debate sobre a crise do projecto comunista. Tendo optado, em alternativa, tanto por explicações superficiais, como por um negacionismo cada vez mais inaceitável e contraproducente. Isso conduziu muitos comunistas, num errado reflexo defensivo, a julgar que o debate levaria a uma abdicação do projecto e a procurar justificar tudo pelo ponto de vista idealista dos “desvios” ao projecto, dos “abusos” e “adulterações”. Ignorando dessa forma, em ruptura com o marxismo, os problemas da base material, económica, das relações sociais e das características superestruturais, que descrevem o processo histórico objectivo percorrido por essas sociedades e o fracasso da sua edificação em bases não capitalistas. O desenvolvimento de um modelo baseado na extracção de mais-valia por parte do Estado, assente numa hierarquia burocrática, de poder e subordinações, gerou uma estratificação social hierarquizada, e impediu o desenvolvimento de uma sociedade democrática e dinâmica, em que os trabalhadores produzem, apropriam-se e distribuem, em base colectiva e auto-organizada, a riqueza que a todos pertence, e em que superam as múltiplas formas de alienação e de dominação. A actualidade do projecto comunista está precisamente no seu reiterado objectivo de caminhar para a auto-organização dos trabalhadores e no repensar do papel do Estado no devir económico, social e político. O que foi o encontro falhado subsequente a 1917, entre revolução social e democracia, apresenta-se agora em condições de se tornar no seu contrário, a partir do desenvolvimento das forças produtivas e da evolução social e democrática das sociedades mais desenvolvidas. Porém, não é possível ultrapassar um sistema de valores e de comportamentos que desembocaram num profundo revés histórico e ensaiar a elaboração de novas concepções, sem a prévia interpretação crítica da experiência vivida (“do passado”). Só com um profundo esforço crítico e com a revalorização do trabalho teórico, o projecto comunista estará em condições de tirar lições da experiência, de estudar a realidade actual e de intervir através das contradições que nela se manifestam, de pensar e projectar o futuro. E poderá readquirir a credibilidade e a influência perdidas junto dos trabalhadores e dos povos nos tempos que correm. Uma primeira e fundamental questão diz respeito ao primado da democracia e aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Na sociedade e no tempo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o seu valor é intrínseco e insubstituível. Não é negociável, nem subordinável a quaisquer outros valores, por muito respeitáveis que pareçam. "Quem quiser chegar ao socialismo por outro caminho que não seja o da democracia política, chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reaccionárias, tanto no sentido económico como no político". As palavras de Lenine contêm em si a percepção clara de que a superação do capitalismo e a edificação de um novo modo de produção, pela sua dimensão e complexidade, exigem uma consciencialização política dos trabalhadores e da maioria da população, um alargamento generalizado da sua iniciativa criativa, incompatível com as limitações à democracia, o emprego de métodos repressivos e o silenciar das divergências. Nenhum horizonte de progresso e justiça social é realizável sem a livre participação e decisão dos cidadãos e dos povos. No plano político-institucional a democracia assenta na lógica representativa e na liberdade de intervenção partidária. Mas a par daqueles mecanismos, importa realçar a importância da democracia participativa e directa. A política é originariamente pertença de todos e de cada um dos cidadãos. Sem prejuízo do respeito pelo papel próprio dos órgãos da democracia representativa no exercício do poder político, tal não pode significar a expropriação do papel directo dos cidadãos, e dos seus outros modos de participação e intervenção. Este processo exige por outro lado instituições que correspondam a uma ampla participação das massas na vida política, capazes de canalizar e potenciar a sua iniciativa e de materializar um poder muito mais democrático do que o actual, esbatendo a separação entre dirigentes e dirigidos, e assumindo a forma de um estado que já não é propriamente um estado, onde o governo dos Homens dá lugar à administração das coisas . Contribuindo para a intervenção crescente das massas na vida política, os comunistas devem bater-se e apoiar todas as conquistas e reivindicações democráticas, no sentido do alargamento das liberdades e direitos, e combater qualquer retrocesso que ponha em causa as aquisições democráticas e de progresso social e acentue a distância das populações face aos órgãos de poder. A cidadania e o complexo de direitos que abrange são a pedra de toque de um exercício pleno da democracia. Como disse Luís Sá, “o projecto de cidadania múltipla, ampla e igualitária é inquestionavelmente de esquerda e de classe”. Por outro lado, a democracia não tem fronteiras: deve estar em toda a parte, incluindo dentro das empresas, dos serviços públicos e privados, das instituições não-electivas, das organizações sociais e políticas. Um projecto comunista que assuma a participação democrática, em todos os planos e a todos os níveis, como verdadeiro motor transformador, carece ele próprio de ser um modelo vivo de democracia, quer no que diz respeito ao seu funcionamento interno, quer na sua relação com a sociedade, com os trabalhadores e a generalidade dos cidadãos. 3. Compreender a nova fase do capitalismo em que nos encontramos e as mutações que se observam na sociedade do nosso tempo, intervir através das suas contradições. A globalização dos fluxos de capital, a interconexão entre os principais estados e as empresas transnacionais, bem como das alianças estratégicas ao nível dessas empresas, que são marcantes na presente fase do capitalismo, não eliminam as contradições, choques e conflitos entre grupos capitalistas e as suas expressões ao nível dos estados e dos governos. Esta globalização neoliberal está a desmontar aceleradamente os “velhos” regimes representativos desenvolvidos no contexto do pós-segunda guerra mundial, baseados na soberania do Estado-Nação, na relevância das funções sociais do Estado e numa representação política democrática minimamente genuína. Os dogmas neoliberais respeitantes à liberalização, à desregulação dos mercados nacionais e à privatização, bem assim como a acelerada predação dos recursos e a falta de respeito pelo homem e pelo seu futuro, constituem o ambiente em que o “capitalismo global” tem afirmado os seus interesses. Mas essa afirmação de interesses tem simultaneamente engendrado novas contradições e choques e definido novos espaços de intervenção, que vieram somar-se aos que permanecem e que derivam da própria natureza exploradora do capitalismo. Contradições, nomeadamente, entre o “capitalismo global” e o “capitalismo nacional”, entre o capitalismo financeiro ligado à especulação e o capitalismo ligado à produção de bens e serviços, entre as grandes empresas transnacionais (com a sua tendência para a criação de redes oligopolistas) e toda a constelação mundial de pequenas e médias empresas exploradas por elas de maneira cada vez mais intensa, entre o lucrativismo desenfreado e as novas fronteiras da segurança humana e da vida saudável. A completa subordinação do económico e do social à lógica cega do mercado capitalista conduz à satisfação exclusiva da procura solvente e não à satisfação das necessidades humanas. As desigualdades sociais e as assimetrias nacionais e regionais estão a acentuar-se rapidamente. Os fenómenos da exclusão social e da pobreza alastram, mesmo nos países mais desenvolvidos. Neste mundo absurdo da globalização neoliberal as situações de superprodução (responsáveis por crises económicas e pela consequente delapidação de capacidades produtivas) e as pressões para a “produção do efémero” nos países mais desenvolvidos, andam a par com políticas restritivas ao consumo e com a insatisfação de necessidades humanas básicas, que atingem um número cada vez maior de seres humanos. Entretanto há a registar a falência histórica e a degenerescência do paradigma estalinista, no leste como no ocidente, inseparáveis do dogmatismo e do primarismo das análises que prevaleceram no movimento comunista desde o final da década de vinte do século passado. A renovação comunista retoma a radicalidade do caminho aberto por Marx, assumindo que um propósito verdadeiramente transformador, para mais num quadro de profundas mudanças, não é concretizável sem um exigente e permanente esforço de conhecimento da realidade e em constante interacção com a prática. O método com que Marx traçava a perspectiva conserva hoje para nós toda a sua exemplaridade: “análise aprofundada das contradições do real, detecção dos pressupostos objectivos da sua superação e, a partir daí, determinação de um objectivo revolucionário plausível” . Isso significa, em primeiro lugar, um aprofundado trabalho de conhecimento das mutações que estão a marcar o desenvolvimento económico e social contemporâneo – de que a revolução científica e tecnológica e em particular a revolução informacional constituem o mais formidável acelerador - e de análise da nova fase em que o capitalismo entrou e do conjunto das velhas contradições e das novas contradições emergentes. Com um particular destaque para questões tais como a intensificação e a sofisticação da acumulação de mais-valia, as mudanças verificadas ao nível do trabalho e das condições de trabalho dos trabalhadores, as mutações registadas nas fronteiras do produtivo e do não produtivo, as novas realidades comunicacionais e as decorrentes da concentração urbana, o esvaziamento do conteúdo substantivo da esfera política democrática provocada pela globalização neoliberal, a dimensão política das questões ambientais e bioéticas, a nova estrutura classista emergente à escala mundial. 4. O que é necessário abandonar não é a visão comunista, nem a vontade de impulsionar uma transformação radical da sociedade. Está hoje à vista o desajustamento e o fracasso históricos de uma concepção vanguardista de projecto revolucionário que reduz à simples conquista do poder do Estado o essencial da dinâmica transformadora, que “passa por cima” ou menospreza o poder de decisão democrático e a participação dos trabalhadores e dos povos, e que em nome do primado da luta contra a exploração económica assume que os fins justificam os meios, mesmo que para isso tenham que ser violados direitos humanos fundamentais e impostas concepções de sociedade e de partido profundamente antidemocráticas. Mas não é a visão comunista nem a radicalidade das transformações sociais e políticas que ela sustenta que perderam razão de ser e actualidade. Uma visão comunista liberta do estalinismo, que assuma a radicalidade do propósito de transformação da sociedade, incluindo o definhamento do Estado em todas as suas dimensões de poder alienado e alienante, mas que conduza toda a sua acção e a sua intervenção em todos os combates em absoluta coerência com os objectivos democráticos, libertadores e emancipadores que proclama, não tem hoje menos razão de ser do que há cento e cinquenta anos, muito pelo contrário. Mas para isso é essencial romper com uma perspectiva instrumental dos seres humanos, dos trabalhadores, e dos povos, e ter como primeiro e principal objectivo que sejam eles próprios a assumirem-se como construtores conscientes do devir social. E não pactuar com a utilização dos imperativos reais da luta social para a subordinação acrítica a auto-revelados interesses de grupo, de classe ou de Estado. O comunismo pagou um preço incalculável pelo vanguardismo sectário e pela ilusão de que alguma mudança em profundidade pode realmente operar-se sem que os trabalhadores e o povo a tenham verdadeiramente adoptado e decidido. Para os que ainda hoje não o compreenderam, resta a interminável perplexidade em torno dos acontecimentos do Leste e a lamúria sobre o engano dos “trabalhadores” pela comunicação social dominante, bem como o recurso a uma demagogia populista cada vez mais patética. Mas para uma renovação comunista, que centre a sua intervenção na análise dos problemas e na exposição de propostas para a sua solução e que aposte na constante mobilização social e democrática para o debate e para a luta transformadora, com um destaque particular para a intervenção dos próprios trabalhadores, abre-se um enorme espaço de trabalho, de afirmação e de crescimento de influência. 5. Desenvolver o pensamento crítico inspirado por Marx, um trabalho essencial. Uma das mais pesadas e negativas heranças do estalinismo tem a ver exactamente com a fixação dogmática de um paradigma de sociedade e de partido, com a regressão teórica, com o desprezo e até a perseguição a que votou a elaboração e o debate teóricos, com a renúncia ao que é essencial – e revolucionário – no pensamento crítico de Marx e dos que verdadeiramente o prosseguiram. O dogmatismo estalinista concebeu o “socialismo” como um sistema económico assente em relações de produção e de propriedade de carácter estatal, com uma organização social baseada num poder burocrático, num quadro de afirmação nacional estreita. A razão principal porque o marxismo foi congelado nos partidos comunistas é que o seu desenvolvimento teria conduzido ao questionamento das opções que os países do “socialismo real” abraçaram, designadamente desse modo de produção estatal. E teria conduzido à necessidade de aprofundamento da propriedade social, de afirmação de um efectivo modo de produção, apropriação e distribuição socialista, de fortalecimento da democracia e da cidadania. Às razões estruturais para o congelamento do marxismo no seio do movimento comunista, acresce no caso português que a ditadura fascista, que durante quase meio século submeteu o povo português à repressão, ao isolamento e ao atraso cultural, criou particulares dificuldades em relação ao seu desenvolvimento no nosso país e tornou os simpatizantes ou apoiantes da ideia comunista particularmente vulneráveis às simplificações dogmáticas e à regressão teórica que tinham por centro irradiador o PCUS. Apesar das concepções prevalecentes no movimento comunista internacional, sem dúvida que os comunistas portugueses desempenharam um papel de decisiva importância na resistência ao fascismo e na fundação revolucionária do regime democrático. Mas a mais simples revisitação das análises produzidas pelo núcleo dirigente do PCP – sobretudo nas duas últimas décadas – evidencia a crescente incapacidade de compreensão da realidade internacional e nacional, o desfasamento da linha geral seguida em relação às mutações verificadas na sociedade, e o desvio político de direita que tem acompanhado o seu retrocesso e petrificação ideológicas. A crise do PCP com que os comunistas estão confrontados apresenta-se assim com duas dimensões inseparáveis. Por um lado, ela é parte da crise do projecto comunista, à escala mundial, e parte da inevitável lentidão do processo crítico em relação ao paradigma estalinista e da complexidade da elaboração e afirmação de um comunismo do nosso tempo. Mas, por outro lado, ela apresenta características específicas e coloca a necessidade de uma resposta rápida ao processo de declínio de influência, de desfiguração e degenerescência do PCP. A renovação comunista assume que o desenvolvimento do movimento teórico – do trabalho de pensamento, de debate de ideias, de criação de uma forte cultura de transformação social – em ligação com a dialéctica do social e do político, constitui uma linha fundamental para o desenvolvimento de uma radicalidade efectiva, para a busca de uma nova maneira de fazer política e para fazer avançar a causa da construção da sociedade sem classes que a nossa época cada vez mais reclama. Em tal trabalho de reflexão e de livre debate de ideias, a análise crítica do contributo de destacadas figuras que se empenharam no caminho aberto por Marx e por Engels – como Lénine, Rosa Luxemburgo, Gramsci, para não citar outros, incluindo nossos contemporâneos – tem evidentemente lugar. Mas de todo se abandona a sinalética dos “ismos” que marcaram de forma extremamente negativa a causa comunista durante o século passado com a tentativa da sua transformação em matéria de fé e de escolástica fundamentalista. 6. Aprender com a degenerescência de um projecto revolucionário e com uma concepção de sociedade e de partido historicamente fracassadas. Quais as razões porque o processo libertador e emancipador aberto pela revolução de 1917 na Rússia entrou pelo caminho da degenerescência, poucos anos decorridos? Quais foram as verdadeiras razões da implosão do “socialismo real” na União Soviética e nos outros países do Leste, pesem embora os esforços e os sacrifícios desenvolvidos por sucessivas gerações? Por que motivo a generalidade dos partidos comunistas está a perder aceleradamente a sua influência, ao ponto de se terem transformado, em muitos países, em formações partidárias de natureza residual? A direcção do PCP opôs-se sempre ao livre exame destas questões como se este debate, pela complexidade e impacto histórico dos acontecimentos envolvidos, não fosse absolutamente decisivo em relação ao futuro do projecto comunista. É certo que o núcleo dirigente do PCP, no início da década de noventa, não podendo negar a grave evidência da situação criada no Leste da Europa, passou de um seguidismo completamente acrítico em relação à situação na União Soviética e aos outros países socialistas, para o súbito reconhecimento de que, nos países socialistas do Leste da Europa, afinal os partidos comunistas se tinham afastado dos ideais comunistas, afinal tinham cometido erros gravíssimos, afinal tinham-se isolado e sido contestados pelos respectivos povos, e por isso tinham sido afastados do poder. E apressou-se a formular descritivamente cinco traços negativos fundamentais que a implosão do socialismo no Leste da Europa evidenciava. Ao refugiar-se na pouco verdadeira, presunçosa e nada internacionalista afirmação de que “muitos anos antes” da implosão do socialismo no Leste já o PCP havia excluído do ideário, da linha política e funcionamento do Partido aspectos das reveladas “infracções ao ideal comunista” e um “modelo” que significava, não apenas o afastamento, mas o afrontamento do ideal comunista”, o núcleo dirigente do PCP imaginou que poderia esquivar-se por entre as gotas da chuva. E que bastaria o impenitente praticismo, a baixa preparação ideológica e o sentimento de insegurança de muitos militantes para transformar essa afirmação numa insofismável e suficiente verdade. As questões de fundo cuja discussão foi adiada e iludida ao longo de uma década, voltam porém incessantemente a colocar-se. E quanto mais esse debate é atrasado e mais se acentuam fenómenos internos de conservadorismo e de regressão sectária, menos capacitado fica o PCP para travar e inverter o seu continuado declínio e para construir – num quadro indispensavelmente aberto ao debate que os comunistas de todo o mundo têm vindo a realizar – um caminho com futuro. Aprender com a experiência do século XX, examinar com radicalidade marxista o fracasso da concepção estalinista de sociedade e de partido e as derrotas históricas a que ela conduziu o movimento operário e o movimento comunista internacional, é um empreendimento fundamental para o processo de renovação comunista e para o restabelecimento de laços profundos com os trabalhadores e com a sociedade do nosso tempo. Tal trabalho crítico não envolve qualquer menosprezo pela dimensão humana da militância de milhões de comunistas, nem pelas conquistas democráticas e dos trabalhadores que ela tornou possível, ao longo de décadas. Muito pelo contrário. Mas é também a dignidade e o valor desse combate, que em Portugal incluiu um longo período de resistência nas difíceis condições da ditadura fascista e de exaltante conquista revolucionária da liberdade e da democracia, que torna hoje imperativo o inconformismo perante a profunda crise da causa comunista e o empenho na procura de novas respostas para um tempo de velhos e novos problemas e de profundas mudanças. Sem adoptar como modelo nenhuma dessas experiências, antes procurando estudá-las na sua diversidade, deve salientar-se que elas não podem ser julgadas pelos resultados imediatos, designadamente eleitorais, em geral negativos, como faz a direcção do PCP para, com a habitual petulância, sentenciar que não há outra via senão o enconchamento medíocre e sectário que pratica. Esta procura não pode ignorar os esforços e as experiências críticas, autocríticas e renovadoras feitas por partidos e agrupamentos comunistas de outros países. A crise dos partidos comunistas não constitui um mal superficial e passageiro, mas uma questão que exige sério, continuado e inovador trabalho de fundo para ser superada. A ruptura com as concepções estalinistas que durante décadas dominaram e acabaram por condenar ao fracasso a luta pela emancipação social e política dos trabalhadores e a procura de novos caminhos que libertem o potencial criador do projecto comunista é só por si uma atitude positiva que já conta, além disso, no seu activo com casos de sucesso na travagem do definhamento e no aumento da influência social e eleitoral. É com essa atitude que importa prosseguir. 7. A organização comunista não pode mais reger-se pelo chamado centralismo democrático. As velhas concepções, métodos e práticas de organização comunista codificados no período estalinista e generalizados como “modelo” para todo o mundo, bem como a concepção e a prática de socialismo que vigorou durante grande parte do século XX, foram definitivamente rejeitadas pelos trabalhadores e pelos povos. Em tempos marcados, entre outros aspectos, por uma crescente diversidade social, fruto da complexificação da divisão do trabalho e da organização das forças produtivas, por uma reforçada exigência democrática e pela sociedade de informação, não há verdadeiramente lugar para partidos ou organizações comunistas influentes que não coloquem no centro da sua intervenção a questão do aprofundamento da democracia. E que não sejam elas próprias, internamente e na sua ligação com a sociedade, exemplos de vivência democrática, de debate criativo, de transparência, de respeito pela expressão das diferentes opiniões. Não faz hoje sentido a manutenção de uma estrutura hierarquizada, com uma direcção que se reserva o monopólio de pensar e decidir, e com um corpo de funcionários que actuam como a cadeia de comando de um exército. Como não faz sentido que a direcção se reserve o acesso à informação partidária relevante, impedindo a permanente circulação e o debate horizontal de ideias e informações. Como não faz sentido que os militantes não possam exprimir abertamente as suas opiniões, tanto a nível interno como no plano público. Como não faz sentido um sistema de preparação dos congressos em que é monopólio da direcção cessante (e dentro desta de um núcleo constituído como grupo no seu interior) a apresentação das teses de orientação política geral, das alterações ao programa e aos estatutos do partido e a selecção dos elementos que compõem a lista da direcção a eleger pelo congresso e a composição dos restantes órgãos dirigentes. Como não faz sentido que se proclamem uns tantos dogmas como princípios da identidade do Partido, insusceptíveis de alteração ou discussão e funcionando como uma espécie de lei travão a toda e qualquer renovação. Como não faz sentido continuar a impor na prática o voto aberto, até para as eleições de cargos partidários, constrangendo ou mesmo impedindo a manifestação da efectiva vontade de cada um. Este sistema não só torna a organização dos comunistas incapaz de sair do círculo de posições em que uma direcção a queira manietar, como transforma o núcleo dirigente numa entidade que se impõe antidemocraticamente ao partido, em vez do contrário, e numa incontrolável sede de todos os carreirismos, além de ter o efeito altamente negativo de desresponsabilizar os militantes e de apoucar o seu estatuto. O partido não tem um verdadeiro debate interno, já que imperam os tabus e restrições impostos pela direcção. Os militantes ficam à espera da “orientação” política, já que verdadeiramente são alheios à sua decisão nem têm acesso à informação e às opiniões contraditórias que a permitam debater, fundamentar ou infirmar. Um partido regido pelo denominado centralismo democrático, na prática cada vez mais autocrático e burocratizado, em que o “centro” é o núcleo dirigente que exerce o poder sobre o Partido, não reponde às necessidades do tempo presente, não permite a intervenção criadora dos comunistas nem a sua participação activa no debate e definição das orientações políticas e ideológicas. A unidade necessária do partido não pode mais assentar numa disciplina emanada de um ente abstracto, “o Partido”, colocado acima da vontade dos militantes e que “tem sempre razão”. E na concepção estalinista que a organização partidária “reforça-se depurando-se”. A teoria da “unidade de ferro da classe operária” deve ser portanto substituída por uma prática de agregação e unidade na diversidade, onde se promove o marxismo como sistema aberto que é, que aceita leituras e saídas para os problemas, diversos e mesmo contraditórios, e onde a procura da unidade se faz para um desígnio simples e estratégico: a luta e unidade dos assalariados contra a exploração capitalista, pela superação do assalariamento enquanto manifestação última de alienação do trabalho, e por uma economia e sociedade onde passe a imperar a produção, apropriação e distribuição colectivas da riqueza. A renovação comunista assume a necessidade de uma profunda mudança da organização dos comunistas. A informação e as opiniões devem circular de forma livre, incluindo transversalmente. O debate em torno das grandes questões, incluindo de orientação política geral, deve ser estimulado. Em nenhuma situação, poderá ser coarctada a expressão livre de opiniões, mesmo que minoritárias. Não se deve confundir a unidade na acção com monolitismo de pensamento. As diferentes estruturas partidárias devem poder relacionar-se livremente entre si. Os militantes devem ser permanentemente chamados a assumir responsabilidades políticas. A força da organização dos comunistas assenta na inteligência, no empenhamento e na disponibilidade dos homens e mulheres que a integram. Os militantes que estejam dedicados a tempo inteiro ou parcial à actividade política, nessa qualidade devem estar ao serviço da organização e de todos os militantes e não da direcção ou de qualquer grupo de militantes. Deve ser limitado o número de mandatos consecutivos nas mesmas funções dirigentes de carácter executivo. E o mesmo princípio deve ser observado no desempenho de cargos públicos de natureza executiva. Os congressos devem permitir a apresentação de teses alternativas e de listas alternativas (ou então de lista com a inclusão de todos os supranumerários propostos com votação individualizada dos nomes). A eleição dos delegados deve ser feita de forma a assegurar o princípio da representação proporcional dos defensores das diferentes teses que tenham carácter alternativo. O voto deve ser secreto, na eleição dos delegados e dos dirigentes e na votação dos documentos. Todos os cargos nacionais, incluindo o de Secretário Geral, devem ser preenchidos por eleição directa em congresso. A ordem das intervenções deve respeitar a das inscrições para o uso da palavra. A menos que sejam retiradas pelos proponentes, todas as propostas apresentadas a congresso devem ser efectivamente deliberadas por este. Os efectivos e o estado da organização e das suas finanças, tanto a nível nacional, como regional e sectorial, devem ser tornados públicos. A lista actualizada dos membros pertencentes a cada organização ou sector e as formas de contacto devem estar expostas no centro de trabalho respectivo desde a data da convocação até à da realização do congresso ou assembleia que tenha carácter deliberativo. Uma organização que funcione assim será então uma verdadeira organização democrática de comunistas, cidadãos com uma opção ideológica definida que querem e devem efectivamente poder participar em todos os debates e decisões fundamentais. Só a partir dessa base de funcionamento democrático da organização é que se tornará possível alargar a influência e a participação partidárias, aprofundar o debate e desenvolver a experimentação sobre a forma e o funcionamento da organização política que melhor correspondam às novas necessidades de intervenção dos comunistas e às exigências do nosso tempo - uma organização que seja ao mesmo tempo diversa e coerente, imersa na complexidade social e politicamente organizada. 8. Desenvolver o conteúdo do comunismo do nosso tempo. A concepção de partido comunista que atravessou o século XX fez o seu tempo. O modelo soviético desapareceu e o mundo é muito diferente do que existia em 1917. O capitalismo não funciona de maneira idêntica e não se luta da mesma maneira contra a alienação, a exploração e a dominação. Para responder às exigências e às possibilidades da nossa época, o comunismo necessita de entrar numa nova era, com um outro projecto, outras práticas e outra cultura. A acomodação à lógica do capitalismo, como se este constituísse o fim da história, dissolve o sentido da transformação social na ordem das coisas existente. Mas o sectarismo que desliga a ideia de superação dessa lógica das condições objectivas e da evolução da consciência e da participação dos trabalhadores e dos povos, conduz por sua vez ao verbalismo desviante e ao impasse histórico da vontade transformadora. Pensar e construir uma dinâmica de superação do capitalismo, inscrita na realidade concreta do tempo e não apenas no domínio da utopia, implica assimilar as lições da experiência e compreender que não é possível “decretar” o futuro. As auto-proclamadas vanguardas, com as suas “certezas”, com o seu doentio sentido da hierarquia, com o culto de personalidade dos seus “chefes”, com os seus métodos anti-democráticos e práticas que chegaram a atingir o totalitarismo mais desumano, em vez de levarem à emancipação dos trabalhadores, conduziram-nos afinal a sucessivas e graves derrotas históricas e à desmoralização e ao retrocesso da sua causa. Recusando o regresso ao passado, a condições e a orientações que a experiência condenou ou que simplesmente fizeram o seu tempo, mas recusando também a demagógica invenção de um futuro sem memória, a renovação comunista enuncia o propósito de transformar o espaço ideológico, político e organizacional do comunismo de forma relançá-lo dinamicamente na realidade do nosso tempo. Este propósito implica um aprofundado debate e uma exigente elaboração sobre o conteúdo do projecto político e ideológico do comunismo contemporâneo e sobre a sua própria cultura. Exige que o exame crítico da experiência comunista no século XX seja prosseguido, sem obstáculos nem obediência a dogmas. E que seja desenvolvida a nova forma organizacional dos comunistas em correspondência com as novas condições e exigências do seu projecto. Esta é uma tarefa que os comunistas não podem empreender isoladamente em tal ou tal país, mas que a todos convoca, sem primazias, para além da procura de respostas específicas para as diferenciadas situações em que intervêm. É também um debate que não deve estar fechado a novas contribuições e protagonistas que emergem constantemente da vida das sociedades. Num tempo que não pára, é um esforço que naturalmente não suspende a quotidiana necessidade de intervir e de lutar em torno dos problemas políticas e sociais concretos que dizem respeito aos trabalhadores e à sociedade e que preenchem a agenda dos dias. 9. Concepção e estratégia políticas para a mudança. A renovação comunista assume o objectivo fundamental do aprofundamento da democracia e manifesta-se por um poder político com um elevado nível de participação e próximo dos cidadãos. Defende a descentralização, propugna a transparência da vida política e da administração, luta por uma justiça célere e acessível, que não seja nem pareça justiça só para os ricos. A representação social dos comunistas radica naturalmente no mundo do trabalho. O universo laboral em Portugal alterou-se profundamente nos últimos decénios, como mudaram muito e também no sentido positivo os principais indicadores sociais (saúde, educação, universalização da segurança social, equipamento habitacional, viatura própria, etc.). Esta evolução positiva está intimamente ligada à participação dos comunistas na mobilização política e social por um país moderno e socialmente mais justo. Para reforçar a sua intervenção nas actuais condições, os comunistas não podem relacionar-se com a sociedade portuguesa através dos mesmos padrões e critérios do Portugal dos anos 60 e 70 do século passado. A renovação comunista aponta por isso a necessidade urgente da análise das características sociais, económicas e culturais do Portugal do início do século XXI e da avaliação prospectiva da sua evolução. Hoje, os comunistas, sem deixarem de ter em conta os sectores operários tradicionais e as alterações que neles se têm verificado, têm de ter em conta o peso dos sectores de serviços e dos intelectuais e quadros técnicos (crescentemente assalariados). Não há um Portugal de grandes indústrias pesadas nem de grande peso laboral na agricultura. A acção dos comunistas, neste Portugal do início do século XXI, tem de ser também ela diferente, orientada para a sociedade do presente, sob pena de crescente isolamento e divórcio da realidade. Há um Portugal marcado pela chegada ao assalariamento de novos e altamente instruídos segmentos de trabalhadores, com as suas visões por vezes imaturas e por vezes divergentes acerca do socialismo, um Portugal onde assalariados se confrontam com formas de trabalho não assalariado, semi-assalariado, na mesma empresa e por vezes misturando-se em cada caso individual. O confronto entre a perspectiva assalariada, não significa necessariamente o recuo da consciência de classe dos assalariados, mas antes trás consigo a mais clara assunção que a forma assalariada de estruturar as relações de produção é injusta e que é ilegítimo alguém controlar a riqueza produzida pelo assalariado que não sejam os próprios trabalhadores. O confronto entre a perspectiva assalariada e não assalariada pode acelerar e não atrasar a consciência a favor da superação da forma assalariada de remuneração e assim estruturar em novos moldes a unidade dos assalariados e destes com camadas e classes não assalariadas indispensáveis à formação de uma ampla coligação social e política contra o grande capital. A renovação comunista assume de forma muito particular a valorização dos trabalhadores e do trabalho, fonte de toda a riqueza humana. Não se trata de negar o papel do investimento produtivo, mas sim de sublinhar que é o trabalho que permite a acumulação do capital e que as aplicações deste pressupõem sempre mais trabalho. Hoje, quando surgem novas formas de exploração do trabalho, os comunistas são chamados à ingente tarefa de encontrar os novos paradigmas de direitos laborais e de mobilizar os trabalhadores para a sua defesa. Face ao crescente papel económico e social do conhecimento, a educação e a cultura constituem dimensões fundamentais em que se decidem as condições de vida e a efectiva cidadania das populações, donde a importância do acesso pleno de todos os cidadãos a esses bens. Para a renovação comunista, a concretização do princípio da igualdade constitui um desígnio humanista superior. A democracia social consagrada na Constituição, incumbe o Estado através de sistemas de carácter público e universal, de concretizar os direitos sociais dos cidadãos (saúde, educação, segurança social, habitação social, entre outros). O papel das funções sociais do Estado não é substituível. Mas uma perspectiva comunista deverá combater a tentativa de apropriação capitalista dessas funções sociais e defender activamente o controlo social da produção dos bens públicos e sociais, que possibilitem orientar o sentido e a organização dessa produção. A justiça fiscal e o combate vitorioso contra a fraude e evasão fiscal, o combate à corrupção e ao clientelismo, são objectivos também encarecidos pela renovação comunista. Uma atitude ética e a defesa de práticas intransigentemente éticas são também formas de crítica ao sistema dominante e de combate pela sua superação. A realização da democracia económica é o desafio mais complexo que se coloca nos objectivos da renovação comunista. Se é certo que a plena democracia económica pressupõe a superação do actual sistema sócio-económico, também é verdade que, pela luta, é possível limitar alguns dos seus efeitos nefastos. Assim sucede com todos os mecanismos que possibilitem que o poder político democrático exerça funções de controlo do poder económico. O desafio para a renovação comunista, hoje, é o de juntar a sua inteligência e a sua força na intervenção e mobilização de todos os que lutam contra o processo de globalização neoliberal em curso e que trabalham para construir uma alternativa que desenvolva instrumentos de regulação política democrática à escala mundial, por forma a permitir finalmente o aproveitamento das enormes potencialidades da economia global e da revolução científica e tecnológica, no sentido da justiça e da satisfação das necessidades da humanidade. O posicionamento da renovação comunista face à construção europeia constitui uma das áreas de atenção prioritária. A dinâmica dos vários interesses hegemónicos capitalistas no mundo pressionam processos de integração. Contudo, o interesse na cooperação internacional, mesmo a que é geograficamente condicionada, transcende o mero interesses de países e empresas multinacionais dominantes e entronca igualmente no interesse dos trabalhadores e dos povos. Portugal está na União Europeia. O que se exige dos comunistas é que lutem dentro da União Europeia pela sua transformação, para que se acentue a vertente social, para que sejam respeitadas as culturas dos povos que a integram, para que ela adopte uma atitude humanista em relação aos imigrantes, para que seja dada prioridade ao desenvolvimento equilibrado e não a critérios cegos de equilíbrio orçamental e financeiro, para que se aplique o princípio da harmonização no progresso, para que se institua uma verdadeira cidadania europeia. Este propósito entra naturalmente em contradição com um projecto de construção europeia orientado para a disputa da hegemonia capitalista à escala mundial com os Estados Unidos, como é comprovado por propostas hoje em discussão sobre a militarização da UE e sobre a Constituição da UE. Os novos temas de reflexão devem estar permanentemente na agenda dos comunistas. Sejam os novos desafios colocados pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia, sejam as questões ambientais e do desenvolvimento sustentável, sejam os complexos problemas da droga e da toxicodependência, seja a promoção do princípio da paridade, sejam os múltiplos desenvolvimentos culturais e de novos estilos de vida que emergem na sociedade actual, seja a garantia dos direitos das minorias, seja a afirmação de uma nova geração de direitos individuais e sociais. Os comunistas têm a obrigação, em todos os campos, de procurar ser cidadãos do seu tempo e de prestar atenção a todos os problemas da sociedade. E de assumir a elaboração e a defesa de propostas em correspondência com a sua própria visão humanista, colaborando empenhadamente no progresso social e cultural. Estão à vista as consequências sociais e políticas do regresso da direita ao poder e ganha por isso uma acrescida importância a defesa e a construção de uma alternativa de esquerda à presente situação. Se por parte do PS persistir uma perspectiva hegemónica em relação ao espaço plural da esquerda e for subestimada a importância de uma perspectiva convergente; se à esquerda do PS o natural propósito de reforço de posições próprias de cada força for confundido ― como foi evidenciado nos últimos anos ― com o bota-abaixismo populista e por juízos estratégicos erróneos segundo os quais o PS é considerado “igual” ao PSD: então o caminho para uma reorientação à esquerda da vida nacional encontrar-se-á bloqueado e estará facilitado o caminho para a manutenção da direita no poder e quiçá para lograr o seu objectivo de conquistar a Presidência da República. Em sentido inverso, a renovação comunista sustenta a necessidade de uma avaliação lúcida da situação nacional e internacional e da procura de uma resposta política convergente do conjunto da esquerda à presente e grave situação, que em nada é contraditória com a afirmação das posições próprias de cada força ou sector Para encontrar essa resposta torna-se indispensável desenvolver um genuíno processo de diálogo e de convergência à esquerda, abrangente da diversidade das forças sociais e políticas e dos distintos sectores de opinião, e que no respeito pela pluralidade das identidades e das posições procure construir a perspectiva e a possibilidade de um caminho alternativo à presente situação. Um caminho de esquerda que tenha como base o apuramento substantivo de uma política alternativa à do neoliberalismo ― que em aspectos pontuais, mas importantes, da Lei de Bases da Segurança Social e do início da Reforma Fiscal, foi possível atingir durante o segundo governo do PS ― e que reuna as condições de suporte plural indispensáveis à sua sustentação. E que em estreita ligação com os elementos dinâmicos da vida social e política, cuja crescente diferenciação acompanha aliás a complexificação da sociedade, assuma um programa de justiça social como objectivo e ao mesmo tempo como condição do desenvolvimento e da modernização do país. A renovação comunista sublinha, nesse programa, e entre outros pontos, a necessidade de fixação de objectivos audaciosos no domínio da aceleração do desenvolvimento económico e do crescimento da produtividade, e com a protecção e conservação do ambiente. Que reconheça ao mesmo tempo a necessidade de ligação desse projecto com o emprego com direitos e uma melhor repartição do rendimento. Que valorize e qualifique as funções sociais do Estado como a saúde, a educação e a segurança social, o que não é contraditório e até exige uma muito melhor gestão dos recursos públicos que aí são absorvidos. Que concretize a reforma fiscal. Que modernize e torne muito mais eficientes os serviços públicos. Que assuma a descentralização e a regionalização como importantes instrumentos de aprofundamento da democracia e de elevação da qualidade de vida, designadamente no domínio da habitação, do urbanismo, das acessibilidades e do ambiente. Que assuma passos reais na concretização da igualdade homens-mulheres. E que eleve a cultura e a cidadania, condições básicas para a construção do futuro colectivo dos portugueses no contexto do processo de integração europeia em que participamos. É esta a convergência à esquerda necessária para construir a alternativa que o tempo actual requer. E que contará por isso com o persistente empenho e a iniciativa da renovação comunista. 10. Funções sociais e funções políticas. É uma constatação, tanto à escala internacional como nacional, que os partidos tradicionais da esquerda foram incapazes de compreender a globalização neoliberal e o conjunto de importantes alterações que dela decorrem para a vida das sociedades e, em particular, a distanciação de importantes centros de decisão económica e política em relação à esfera de decisão democrática dos cidadãos. Por outro lado esses partidos têm vindo a ser crescentemente dominados pelo eleitoralismo, com um discurso construído sobre antagonismos muitas vezes artificiais e com recurso ao populismo e a técnicas de marketing comercial. E têm vindo também a ficar aprisionados pelo financiamento privado (mesmo quando negam essa evidência) para suportar as pesadas estruturas que mantêm e as dispendiosas campanhas de propaganda a que recorrem. Os cidadãos, por sua vez, sentem-se cada vez mais distantes e menos representados por esses partidos, mesmo quando neles continuam a votar, desconfiam (em muitos casos justamente) das apreciações e das promessas dos seus responsáveis e envolvem-se de forma cada vez mais reduzida nas suas actividades. Estas diversas circunstâncias explicam, em grande medida, a importância que os movimentos sociais adquiriram nos últimos anos e a extraordinária pujança das acções internacionais que têm vindo a empreender. E a profunda influência que estão a exercer sobre todo o quadro político e partidário à esquerda. Assumir o aprofundamento da democracia como eixo estratégico, apostar no movimento popular em toda a sua diversidade e pluralidade de objectivos e formas de intervenção, são condições essenciais para ultrapassar as práticas burocráticas instaladas à esquerda e para ganhar e reganhar muitos milhares de cidadãos para o empenhamento e para a intervenção social e política de sentido tansformador. As organizações políticas à esquerda, mas também muitas organizações sindicais e associativas, necessitam de pôr em causa o seu modo tradicional de intervenção e de funcionamento, combatendo práticas centralistas e procurando por todas as maneiras possíveis alargar ao máximo o envolvimento dos seus membros na circulação de informação, nos debates e iniciativas e em todas as tomadas de decisão. Os movimentos sociais e as forças políticas não actuam em campos separados nem têm terrenos reservados. A velha concepção que entendia reservar aos partidos a intervenção geral sobre a sociedade – como a direcção do PCP, com o seu autismo, ainda sustenta - foi há muito e para sempre ultrapassada. Organizações sindicais, associações e organizações muito diversas preocupam-se com todos os problemas, discutem-nos do seu ponto de vista e, se o entendem, tomam a iniciativa de intervir em relação a eles sem terem que pedir autorização a ninguém. Mas o fim da separação de campos entre o social e político não significa que a abordagem dos problemas não continue a envolver funções diferenciadas, em constante ligação dialéctica. Os movimentos sociais – organizações e associações muito diversas e sindicatos – têm tido a sua existência ligada a questões ou causas específicas ou à defesa de categorias de pessoas específicas, e têm desenvolvido um ponto de vista geral sobre a sociedade e sobre grandes causas, a partir da sua própria actividade, numa lógica que tem tido a ver sobretudo com o exercício de contra-poderes. Os partidos e outras organizações políticas, cumprem uma função diferente. Porque a elaboração de programas políticos não se pode fazer por simples adição de reivindicações específicas e (naturalmente) desprovidas de coerência entre elas. Implica sem dúvida uma reflexão em torno dessas reivindicações, como ponto de partida, mas é sobretudo um trabalho de elaboração que deve ter em conta o conjunto da sociedade e o estabelecimento de variantes no que toca a prioridades, em ligação com os interesses políticos e sociais que cada um representa. A renovação comunista assume-se como um espaço de reflexão, debate, organização e intervenção, especificamente políticos. Defende a necessidade de uma convergência à esquerda, entre os diferentes partidos e organizações políticas, numa base crítica do neoliberalismo e com reconhecimento das posições próprias que cada um representa. Mas pronuncia-se, simultaneamente, pela importância da acção comum ou convergente com os movimentos sociais em torno das grandes questões colocadas pelo combate à globalização neoliberal e à política de direita, com rigoroso respeito pela autonomia e espaço de intervenção e de decisão próprios de cada estrutura e dos seus membros ou apoiantes. 11. Os comunistas nos movimentos sociais. A presença activa de muitos renovadores comunistas nos movimentos sociais – desde o movimento sindical (CGTP, Federações, Uniões e muitos Sindicatos), até a outras importantes associações e organizações sociais – favorece o desenvolvimento de uma reflexão própria sobre os princípios que norteiam aí a sua actuação. Como comunistas, os renovadores partilham obviamente as análises e batem-se pelas causas do seu próprio espaço político, e mantêm uma atitude de permanente inter-relação e diálogo com todos os que também se reclamando de uma posição crítica do neoliberalismo pensam de modo diferente. Mas como dirigentes, activistas, ou simples membros de organizações sindicais ou de outras associações ou estruturas sociais, os renovadores comunistas fazem prevalecer essa sua qualidade unitária, e assumem como sua primeira preocupação e propósito o absoluto respeito pela independência e pela autonomia dessas organizações, a contribuição para o seu funcionamento e vivência democráticas, a rigorosa defesa do quadro unitário e o combate a todas as tentativas de instrumentalização e manipulação partidárias ou de grupo. Há velhas tradições estalinistas de intromissão partidária na vida das organizações sociais (designadamente através da imposição de homens e mulheres-de-mão para funções dirigentes) e de instrumentalização da sua intervenção, que têm atentado gravemente contra a sua democracia interna e que se têm reflectido de forma muito negativa na sua actividade e credibilidade. Tais práticas não podem ser aceites e a sua crítica e superação necessita de ser empreendida em todas as organizações onde se manifestem. 12. Três direcções fundamentais de trabalho para os comunistas portugueses Os comunistas portugueses empenhados na renovação da sua causa e da sua organização estão confrontados com um vasto conjunto de resistências e enfrentam um quadro de complexas e urgentes tarefas. Para as forças mais à direita representadas no Governo interessa um PCP enfraquecido, reduzido a força de protesto verbal e sem projecto político. Um tal PCP constituiu, objectivamente, um factor favorável para a direita chegar ao poder e representa um verdadeiro seguro de vida para ela o conservar. Isso explica a sua patente hostilidade à renovação comunista. Para os que no PS apostam no propósito de federar toda a esquerda, a renovação comunista é observada de forma negativa por travar o esperado declínio do PCP. Para os que no Bloco de Esquerda estão fixados num doentio eleitoralismo, a renovação comunista não é vista como um parceiro para possíveis combates em comum, mas sobretudo como um obstáculo ao seu crescimento eleitoral na área comunista. A existência de experiências concretas de trabalho conjunto entre renovadores comunistas, socialistas e bloquistas ao nível dos movimentos sociais, permitindo o diálogo, o confronto de pontos de vista e experiências de trabalho conjunto, pode ser um passo importante no sentido de construir pontes entre os diferentes sectores da esquerda e combater o sectarismo aí profundamente enraizado. A Renovação Comunista que se assume no espaço político-ideológico da mais antiga formação partidária portuguesa, a qual desempenhou um inigualável papel na resistência antifascista, na conquista da liberdade e da democracia e na construção e consolidação do regime democrático, não limita a esse espaço o debate de ideias que pretende protagonizar na sociedade portuguesa. Dirige-se a muitos comunistas sem partido. E apela também ao diálogo com muitos homens e mulheres de esquerda que procuram uma renovação real na vida política portuguesa, uma nova compreensão do poder e uma prática autenticamente democrática do seu exercício. São três as direcções fundamentais de trabalho que a renovação comunista afirma e que se empenhará em concretizar: 1ª- ligar a resistência ao neoliberalismo e à política de direita, à construção de uma alternativa de esquerda; 2ª- renovar o projecto comunista, o seu pensamento, a sua organização e a sua intervenção; 3ª- assumir a dimensão internacional da luta dos comunistas, quer no espaço social quer no político, designadamente a nível europeu. Nota final No momento em que a aprovação deste Manifesto dota a Renovação Comunista de uma primeira base de análises e questionamentos políticos e ideológicos, ocorre em Portugal pela mão do Governo PSD/CDS uma das políticas mais à direita de que há memória desde o 25 de Abril. Os direitos sociais e laborais estão sob intenso ataque, desencadeado a partir da perspectiva neoliberal que enforma a coligação no poder. A direita chegou ao poder depois de seis anos de maioria aritmética de esquerda a nível parlamentar, primeiro uma maioria tangencial PS/PCP, depois uma folgada maioria de 134 deputados dos partidos PS, PCP e BE. Por responsabilidade fundamental do governo do PS e da sua política, mas também por responsabilidade dos partidos à sua esquerda, essa maioria foi desperdiçada. As lições desse período não foram ainda devidamente tiradas. O PS não só não se empenhou em entendimentos globais à esquerda, como frequentemente capitulou à direita. O PCP não quis lutar pela efectiva transformação da maioria parlamentar existente numa maioria de suporte de uma política de esquerda, consubstanciada por uma plataforma de pontos negociados entre as diversas forças de esquerda e capaz de sustentar uma reorientação no sentido da esquerda da vida política nacional. O BE, que não assumiu um projecto político global para o país, subordinou toda a sua intervenção ao objectivo de crescimento eleitoral imediato. A Renovação Comunista não considera o poder (qualquer poder) como um fim em si, cuja obtenção ou partilha deva ser obtida a qualquer preço. Assumimos que os comunistas devem ser sempre claros na proclamação dos seus objectivos, a começar pelos que afirmam a longo prazo, e manterem-se sempre fieis aos seus princípios. Mas, os comunistas não vêem o futuro como um refúgio para as responsabilidades que hoje têm. Os comunistas vivem o seu próprio tempo e assumem as responsabilidades políticas que têm perante as gerações actuais. E estão dispostos a considerar compromi | ||